É Mau O Que Tu Me Ofereces

        Com uma genuflexão, adentro a igreja. Meus passos imediatamente ecoam pelos vitrais, paredes adornadas e estátuas. Um grande São Bento em um pedestal me saúda, segurando seu cajado e com um corvo aos seus pés. A ave parece sorrir para mim, impressão causada pelo pão que carrega em seu bico. Caminho por fileiras e fileiras de bancos vazios que, sem seus fiéis, trazem uma certa desarmonia ao lugar… parece faltar algo. Incomodo-me. Porém, o incômodo maior é a minha desarmonia interior. Preciso de ajuda. Preciso falar com o padre que já me espera no confessionário.
        Chego até lá e me ajoelho.
        “Boa tarde, padre.” – Apesar de ser de tarde, a luz do Sol pena para vencer os escuros vidros do templo, deixando-o sombrio, porém, aconchegante.
        “Boa tarde. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.” – Sigo o sacerdote no sinal da cruz” – “Que o senhor esteja em seu coração para que confesses os teus pecados com espírito arrependido. Há quanto tempo não confessa, minha filha?”
        “Acho que há uns dez anos, padre. Para ser sincera, estive afastada da igreja nesse tempo.”
        “E houve algum motivo para isso?”
        “Acredito que o hábito apenas foi sugado de mim, assim como meu ânimo e diversas outras coisas…”
        “Sugado? Pelo quê?”
        “Pelo mal, padre. Pelo mal que habitou meu lar. Esse foi o motivo da minha queda. É difícil precisar quando começou, mas os sinais estavam lá desde o princípio. Desde que me mudei para aquele lugar. Porém, sempre teimei em não acreditar, em não aceitar que aquela casa era amaldiçoada. A ficha só caiu mesmo quando presenciei toda a extensão de seu poder.
        “E, mesmo amaldiçoada, eu tive a coragem, ou, talvez, a falta de juízo de ter dois filhos. Um menino, hoje, com sete anos e uma menina, com nove. Por quê? Por que trazer essas criaturas ao mundo sem poder dar um lar tranquilo para elas? Posso ter pensado que não seria tão ruim, que eram coisas da minha cabeça. Mas, não. Tudo, infelizmente, era real e cruel como eu temia. E pior: essas coisas parecem ter atração pelos pequenos, fazem de tudo para estar próximas a eles. Tive esperança de que esse desejo de proximidade pudesse diminuir sua maldade, de que essa criatura seria influenciada pela pureza das crianças. Um engano. E, bem, acho que foi esse o pecado que me motivou a vir confessar, padre.”
        “‘Sede fecundo e multiplicai-vos’, manda o Gênesis. Não consigo enxergar pecado no ato de ser mãe.”
        “Não é tão simples assim. Eu sabia dos riscos que eles corriam! E, mesmo assim, ignorei meus temores. Eu sempre ouvia que era bobagem, exagero da minha parte. E cheguei a acreditar nisso. Até o dia em que, jantando, os pratos começaram a voar na parede. Uma tormenta de arroz e feijão tomou nossa cozinha. Os pequenos se esconderam debaixo da mesa. Eu tive a mesma vontade, mas não podia. Era a mãe. Precisava encarar aquela entidade. Contudo, cada caco de porcelana que caia no chão, cada lágrima dos meus filhos era uma parte de minha alma que escorria do meu corpo.
        “E eu não podia deixar a casa. Para onde iríamos, afinal? Não podendo fugir do problema, tentei contorná-lo. Observei a coisa, tentando aprender seus padrões, entender o que a irritava e evitar o comportamento. Parecia um bom plano! Até o dia em que fui atacada enquanto dormia, no meio da madrugada, por seus gritos e manifestações físicas. Por quê?! O que eu havia feito para provocar sua ira? Eu não conseguia entender.
        “Pensei em várias estratégias. Cheguei ao ponto de preparar uma oferenda para essa criatura. Passei dias cozinhando as melhores refeições que podia, com toda minha dedicação, e as oferecendo. Isso pareceu acalmar o mal por tempo. Houve paz, que durou pouco. Um tempo depois, os ataques retornaram.
        “As pessoas, meus familiares e meus amigos, perguntavam sobre os hematomas que tomavam todo meu corpo, fruto das assombrações. Como eu responderia? Como poderia explicar o mal que possuía meu lar, que sugava minha alma e despedaçava meu corpo? Achariam, com certeza, que eu estava insana ou, pior, que foi culpa minha, que aquilo só estava acontecendo por ter deixado a igreja.
        “Eu estava paranoica. Nas ruas, sempre olhava para trás, observando se era seguida, sentindo que via olhos em meus ombros. A cada bar que eu passava em frente, os homens olhavam. Eles sempre olharam, mas, agora, era diferente. Temia que a entidade pudesse estar entre eles, que os possuíssem e me fizessem algum mal.
        “Exausta, decidi sair de casa. Peguei os pequenos e fui para o meio da rua. Mas que plano eu tinha? Nenhum. Apenas queria me afastar daquele inferno que eu chamava de lar. Na rua, talvez, eu sentisse a paz que não sentia lá dentro. Meus filhos nada entenderam. Estavam assustados e confusos. No fim, não me restou alternativa. Fui convencida a voltar para casa. Depois disso, a criatura pareceu se acalmar por um tempo (sempre era apenas por um tempo!). Outra estratégia que tentei, padre, foi buscar comunicação. Em meu quarto, evoquei-a e tentei travar um diálogo. Afinal, poderia ser um espírito humano atribulado, não um demônio.
        “Cuidado com a heresia.”
        “Que escolha eu tinha? Precisava pensar em saídas. Chamei-a, ela parecia ouvir, mas nada disse. Por fim, ela apenas bateu as portas da casa, como sempre fazia. Aquele ser não tinha racionalidade. Parecia ser uma força da natureza.”
        “Por isso faz mais sentido ser um espírito não humano, não?”
        “Um demônio! Era isso que ele era. Um demônio que amaldiçoava minha casa. Eu aguentei até onde deu, padre. Até onde minhas forças permitiram. No entanto, precisei dar um basta. Foi na vez que recebi mais um dos seus corriqueiros assombros e cai sentada no chão da cozinha. Derrubei o caneco de água quente para o café sobre as pernas e me queimei toda. Nesse dia, meu menino se revoltou contra a criatura e, como seria de se esperar, se machucou também, sendo jogado contra a parede.
        “Como uma mãe poderia permitir que sua cria se ferisse? Senti-me horrível, inconsolável e, até, envergonhada. Envergonhada por consentir com aquelas manifestações malignas por tanto tempo, por ter medo de deixar a casa e fugir para qualquer lugar que fosse longe daquele mal. Além do medo que tinha do que as pessoas pensariam, diriam. Porém, basta, padre. Eu me impus contra esse ser, essa criatura, essa… coisa.”
        “O Espírito Santo te habita e tem o poder de expulsar demônios. Porém, acredito que, em um caso tão grave assim, precisará de ajuda. Não será tão simples.”
        “Não, padre. Eu já expulsei a criatura do meu lar. Acabou. Saí agora da delegacia para pedir uma medida protetiva.”
        O sacerdote fica em silêncio por um instante.
        “Não entendo qual pecado veio confessar, então.”
        “A humilhação, padre, a submissão, a passividade. Por falhar como mãe. Não pedimos perdão por pensamentos, palavras, atos e omissões? Fui omissa. Além disso, obriguei duas crianças a serem filhas daquele… daquele…” – Lágrimas explodem em meus olhos. Enxugo-as e recomponho-me. – “Como pude deixar os coitadinhos serem filhos daquele monstro?”
        “Nada disso é pecado, minha filha. E, menos ainda, culpa sua. Você foi uma vítima e tudo que merece é ser amparada. Tenha o espírito tranquilo. Vá em paz. Não posso seguir com a confissão se é isso o que tem a confessar.”
        “Apenas me absolva, padre! Por favor!” – As lágrimas voltam e minha voz embarga. – “Eu sinto uma culpa terrível que não sei de onde vem… Me absolva, por favor. Eu preciso. Nem que seja pela minha ausência na igreja.”
        Mais um período de silêncio.
        Por fim, o padre estende a mão em direção a minha cabeça.
        “Meu Deus, por que sois tão bom, tenho muita pena de ter vos ofendido, ajudai-me a não voltar a pecar.” – Começo, a voz ainda um pouco alterada pela emoção.
        “Eu te absolvo dos teus pecados em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.” – O padre finaliza e, mais uma vez, eu o sigo no sinal da cruz.
        “Obrigada.”
        Ele não me responde, apenas permanece em silêncio, olhando para frente, pensativo.
        Levanto-me e rumo para a saída. Passo mais uma vez pelo São Bento e seu corvo com o pão no bico.
        “Leve meu pão envenenado para o mais longe possível, por favor.” – Peço.
        Faço mais uma genuflexão e deixo a igreja.

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