Vozes no Ralo

        Por favor, não deixe que essa história morra e caia no esquecimento, assim como creio que acontecerá comigo em breve. A fina membrana de minha sanidade está prestes a se romper, e devo registrar o que ocorreu comigo o mais breve possível. Acredito que logo minha miserável existência chegará ao fim. Seja por mim, seja por eles.
        Minha desventura se iniciou em uma fria tarde de julho. O inverno estava rigoroso naquele ano (rigoroso para os padrões do interior paulista) e eu procurava emprego em alguns sites. Precisava de trabalho, qualquer trabalho. Havia sido uma das vítimas da pandemia na estratégia que muitas empresas adotaram de diminuir o quadro de funcionários devido à vindoura crise econômica. Eu não tinha fundos de emergência, não tinha a quem pedir ajuda. Era apenas eu, o seguro-desemprego, e meu insaciável estômago que clamava por alimento todo dia a fim de prolongar minha desgraçada vida.
        Acabei por encontrar uma oportunidade no manicômio da cidade. Chame-o de hospício ou hospital psiquiátrico, não me importo, esses eufemismos não me descem mais. Secretária. Das 8h às 18h. Pouco mais de um salário-mínimo. Era o suficiente, era minha lanterna dos afogados. Além disso, não trabalharia no manicômio em si, mas em uma das alas de suas ramificações, onde exames eram feitos.
        No primeiro dia, o Dr. Lindermann, um homem careca corpulento, com cerca de quarenta anos, traços e sotaque germânicos, apresentou-nos o prédio da instituição. Na maior parte dos lugares, reinava a paz e a normalidade. Uma normalidade estranha, difícil de engolir, por ser demasiada plástica, mas era uma normalidade. Tudo limpo, silencioso e organizado. Tudo… menos a ala em que os pacientes eram internados.
        Meu incômodo com essa ala começou quando eu ainda estava em sua entrada, esperando o grupo de novos funcionários se reunir. Lá, sozinha em um canto, escutei uma voz vinda do chão. Uma voz abafada e tão cheia de dor e desesperança que nem pareceu real. Sobressaltei-me e me estremeci, imaginando sua origem, com a pesada atmosfera do ambiente contribuindo com a minha emoção. Senti-me incomodada. Apenas desejava sair dali, sentar em meu posto de trabalho e exercer minha medíocre função.
        Ninguém pareceu ter notado meu pequeno susto e, menos ainda, escutado o mesmo que eu. Olho para o chão, tentando localizar de onde poderia ter vindo aquele som, e nada encontro. Apenas um ralo tomado pela ferrugem e coberto de cabelos, pelos, e toda a sorte de sujeira úmida. Uma decadência em forma de ralo. Tento enxergar seu fundo, mas não consigo.
        Novamente, ouço a voz! Dessa vez, as palavras são menos nebulosas e consigo entender um “Me ajude”. Miro com mais afinco para o ralo (o som parece realmente ter vindo de lá) e noto um olho! Um distante olho humano na escuridão, tomado por pânico! Ele não estava lá antes, não até eu notá-lo.
        -Entremos – a voz de Dr. Lindermann me toma de assalto, fazendo minha atenção voltar para o ambiente ao meu redor.
        Meu grupo terminara de se reunir e, com o doutor, adentrava o bloco. Porém, demoro um tempo para conseguir segui-los. Estou confusa quanto à realidade do que vi e ouvi. Tento ver o olho novamente, porém ele havia desaparecido. Chacoalho a cabeça, duvidando de minhas faculdades mentais, e tento retornar à realidade. Por fim, sem escolha, integro-me à manada que progredia.
        Passamos por corredores e corredores de celas, ou seja lá como seu eufemismo queira chamar aqueles conjuntos formados por camas enferrujadas, lençóis manchados de comida, urina e fezes, além de azulejos amarelados, com rejuntes que já foram brancos, mas, hoje, estão pretos. As portas eram feitas de finas chapas de madeiras e estavam lascadas em vários pontos. Em uma delas, via-se uma mancha cor de ferrugem na altura da testa de um adulto que parecia ter sido limpa, contudo, sem sucesso, pois o fluido que a causou havia impregnado na madeira.
        Muitos dos pacientes pareciam sãos e conversavam entre si e com os enfermeiros, com muita serenidade, mas sempre com um ar de tristeza. Já outros, com muito esforço, eram chamados de humanos. Eram figuras magras e farroupilhas, que fediam aos mais inimagináveis fluidos corporais e vagavam como zumbis pelos corredores, com o olhar perdido e a boca entreaberta. Desses, alguns ficaram um tempo me olhando, como quando você olha alguém que lembra conhecer de algum lugar. Em duas das celas que passamos, os seus respectivos pacientes estavam amarrados às suas camas e, um deles, além disso, debatia-se e gritava em uma voz gutural. Toda essa cena impressionou o grupo e a mim, mas os ânimos foram rapidamente acalmados pela palavra de Dr. Lindermann. Ele era o especialista, as pessoas confiavam nele. Menos eu.
        Também recordo que muitos dos loucos possuíam a cabeça raspada, com curativos ou, ainda, com estranhas cicatrizes circulares, o que me causou grande estranheza. Em suma, essa foi a apresentação que tivemos. E aquele olho no ralo não me abandonou em momento algum, provocando-me grande medo e, ao mesmo tempo, uma estranha atração por ralos. À noite, escovando os dentes, sempre encarava a pia, temendo que, como Beverly Marsh, me chamassem lá de baixo.
        Meses e meses de trabalho se passaram. Meses normais, sem olhos ou vozes. Nesse tempo, ouvi conversas por toda a instituição, tentando descobrir se mais alguém passou pela mesma experiência que eu. No entanto, nada descobri. Cada vez mais acreditava que tudo havia sido um pequeno momento de loucura, devido ao estresse da época. Só me restava trabalhar. Contudo, trabalhava temendo quaisquer atividades maléficas que poderiam ocorrer naquele local.
        Muitas vezes passei perto daquele ralo, que me atraia o olhar e me causava a sensação de ser observada. Nada vi, porém, um dia, ouvi. E o que ouvi, como um ferro quente de marcar gado, queimou a membrana de minha sanidade.
        Foi um dia em que passei de meu horário a fim de finalizar a organização de alguns documentos, prontuários e exames. Consequentemente, perdi meu ônibus, e teria que esperar uns quarenta minutos até o próximo. Com medo de ficar sozinha, à noite, no mal iluminado ponto de ônibus por tanto tempo, fui dar uma volta pelo manicômio, à procura de um local onde poderia fumar. Sem notar, como se minha curiosidade fosse um instinto natural, acabei chegando à entrada da ala dos pacientes, com aquele imundo ralo no lugar de sempre. O local estava deserto, todos os internos já haviam se recolhido.
        Olhei ao redor e nada vi, mas senti uma sensação de que não deveria estar ali, que minha presença era indesejada. Como quando notamos um enfeite que não combina com o resto da decoração da casa. Foi então que ouvi! Ouvi vozes em coro recitando:
        -SACRIFICIUM TUUM LAUDABIT DEI.
        Vozes ensandecidas, repetindo uma frase que não me fazia sentido, em uníssono, sem cessar. Tomada pela curiosidade, abaixei-me para escutar melhor o que se passava, pois nada enxergaria naquela fraca iluminação. Além do coro, dois homens conversavam:
        -Lúcio, traga a broca – disse o primeiro.
        -Aqui está, senhor – o segundo respondeu.
        -Que sua loucura banhe Derus, nosso senhor Sol, para acordarmos rejuvenescidos no dia que virá.
        -NÃO! – sobressalto-me com o grito de um terceiro homem, um grito desesperado de temor primal – por que não me mata logo?! Por favor, me mata! Me mata! Que porra é essa que você quer fazer comigo?!
        Não ouvi mais nada, pois toda minha atenção, depois daquele momento, foi roubada pela presença de Dr. Lindermann, saído da escuridão, a alguns metros. Com medo pelo que acabei de ouvir, começo a fugir, sem olhar para trás, deixando o manicômio por uma abertura no muro que alguns dos funcionários mantinham em segredo e que me foi ensinada para quando eu quisesse cortar caminho. A abertura era oculta do lado de dentro por alguns arbustos e pelo mato alto, do lado de fora. Rasguei minha roupa e me arranhei toda, mas consegui escapar. Lamento apenas ter entregue o atalho dos meus, agora, ex-colegas.
        Não sei se foi fruto de minha insensatez ou se realmente aquelas vozes saíram do ralo. De qualquer forma, estou na rodoviária da cidade após uma rápida passada em meu apartamento para pegar alguns recursos para fugir. Nenhuma passagem foi comprada ainda e não sei o que farei ou para onde irei. Gostaria somente que esse relato chegasse até alguém que pudesse fazer algo! Sou somente uma carta marcada nesse jogo e, logo, serei descartada. Faça algo, você que lê isso! Faça algo para deter aquele terrível ritual profano. Eu lhe suplico!

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