Inexorável Crepúsculo

        Antes mesmo do Sol conseguir entrar pelas frestas da janela do meu quarto e tornar visível o contorno dos móveis, meu celular toca. Sete horas, hora de acordar. Porém, em vez de seguir o inevitável destino, aceito a proposta de dez minutos de soneca que o aparelho oferece. Dez minutos não resolveriam a porcaria da noite de sono que tive, mas era bom adiar o mal inevitável. O seu eu do futuro teria que lidar com aquilo, não você.
        Os dez minutos passam (infelizmente eles sempre passam) e lá vou eu para mais um dia. Ando pelo corredor da casa meio tonto, sentindo os membros fracos e a cabeça pesada. Os olhos semicerrados, ainda se acostumando com a luminosidade. Entro no banheiro e logo o cheiro de água sanitária com desinfetante invade minhas narinas. É um cheiro bom, se comparado ao de fezes que estava aqui às duas da manhã. Um presente que recebi do meu pai, um senhor já de idade, quando fui colocar em prática o hábito noturno de ir ao banheiro. Lá estava a tampa do vaso toda suja, como se um pintor houvesse passado grosseiras pinceladas de tinta marrom nela. Além disso, o papel higiênico usado fora jogado na pia. Meu pai nunca aprendeu a descartá-lo no lixo. O que me restava, além da limpeza, apesar do sono e do nojo? E em quem eu poderia descontar minha raiva? Em um pobre senhor cujo cérebro, que persistira por tantos anos, começou a seguir o ciclo natural de falhar? Não. Eu não podia e não era direito. Tampouco era culpa dele. Era culpa da realidade, das coisas como ela são. E de nada valia revoltar-me contra o Universo, a vida, o inevitável. Era inútil. Contudo, como o envelhecer, a revolta também era inevitável.
        O banheiro foi limpo após uma ida ao quintal para buscar os produtos de limpeza e tudo o mais que se precisa para limpar um banheiro. Terminado esse serviço, entrei no quarto do meu pai, que também estava tomado pelo cheiros de fezes (naturalmente, uma pessoa que faz aquela bagunça no banheiro não conseguiria se limpar direito), e o acordei para que tomasse banho e trocasse de roupa.
        Por incrível que pareça, ela não me deixa dar banho nele. Pelo jeito, tem vergonha. Ele toma banho sozinho, o que leva o dobro do tempo e me causa o dobro da preocupação, com o medo dele cair e bater a cabeça no vaso, na pia ou onde mais se poderia bater a cabeça nas várias opções que um banheiro oferece.
        No entanto, dessa vez, eu tinha trabalho para fazer nesse demorado intervalo de tensão: recolher suas roupas sujas, colocar para lavar na máquina e passar aromatizador pela casa, para acabar com os últimos resquícios do cheiro de merda.
        -Uma noite de sono de merda – rio, enquanto vejo no espelho meus olhos com fundas e roxas olheiras. – Uma noite de sono de merda, sem dúvida.
        Tento esquecer aquilo e vou para a cozinha, onde coloco água para ferver em um caneco. Lavo a garrafa térmica, que ainda tem café de ontem, e monto toda a estrutura que se inventou para passar café. Um filtro de papel e algumas colheres de pó completam aquela escultura de arte contemporânea. Para preencher o estômago, temos alguns pães de ontem. Já estão um pouco duros, mas nada que uma visita ao microondas não resolva. Terminada a preparação do banquete, coloco um dos pães com manteiga em um prato e encho um copo com leite (tudo de plástico, para meu pai não quebrar).
        Adentro seu quarto que, por mais que eu me esforce para manter limpo, tem um ar de sujo. O chão gruda e tem sempre um ou outro grão de arroz que escapou da vassoura. A roupa de cama, que troquei ontem, já está fora do lugar, o lençol de elástico escapando do colchão. Sempre parece haver algo de errado naquele quarto. Até a luz da lâmpada parece mais amarelada e menos branca que as demais. De qualquer forma, acordo-o e sirvo seu café. Aproveito para tomar o meu também, na mesa.
        Findada a refeição, volto para o quarto e pego uma caixa de plástico de cima do guarda-roupa. Nela, busco algumas cartelas de comprimidos, destaco alguns, que já sei de cor, que já conheço mais que a mim, e entrego-lhe.
        -Eu já tomei – ele me diz com aquela voz rouca que, ano após ano, fica mais confusa.
        -Tomou quando, pai?
        -Tomei agora cedo.
        -Sei – tento rir e levar na boa a situação. Porém, em meu interior, aquilo causa estranheza. Aquele foi o ser que me criou. Que me educou e ensinou-me a viver. Como ele havia sido reduzido a uma pessoa que não sabe nem criar uma mentira convincente para não se tomar um remédio? Quando aquilo aconteceu? Aquele ser é o mesmo que cortejou, conquistou e se casou com a minha mãe? Não parecia… E não era justo toda essa glória, hoje, se resumir àquilo.
        Mesmo sem querer, meu pai toma os remédios e, com isso, finalizo minhas obrigações matinais. Ou melhor, minhas obrigações em relação a ele. Pois logo ligo meu computador e começo a transformar amontoados de números binários em outros amontoados de números binários que seriam lidos por chips que ditariam se passaria ou não passaria corrente elétrica por um circuito. E, de alguma forma, isso gera riqueza no mundo a ponto de um homem me dar um pouco dela em troca dessa manipulação. Essa riqueza é registrada por outros amontoados de números binários e trocada por produtos e serviços que preciso para manter meu pai e eu vivos e confortáveis.
        Para quê? Para um dia ter o mesmo destino do meu pai e dar trabalho para um jovem da época, que faria tudo isso e, na sua vez, daria o mesmo trabalho para um terceiro. Um ciclo sem fim. Pelo menos meu pai trabalhou em algo real, palpável, em vez dessa ilusão digital que são os trabalhos de hoje. Lutou contra a terra, de Sol a Sol, para arrancar dela o seu sustento. Terra ingrata. Fértil, porém, avarenta e cheia de armadilhas. Enfrentou o mesmo calor, as mesmas formigas e os mesmos malandros que Policarpo Quaresma. Se o triste fim foi inevitável, ao menos o trabalho era concreto. Não um amontoado de eletricidade dizendo verdadeiro ou falso.
        Entretanto, não há tempo a perder, a lamentar. Trabalho e logo chega a hora na qual o almoço precisa ser preparado. Deixo meu quarto e volto à cozinha (cozinha, quarto, cozinha, quarto). Meu pai passou a manhã toda deitado na cama, entre sono e seja lá o que sua mente ociosa pensa. O que mais ele poderia fazer? Assistir à televisão que já não fala mais a língua do seu tempo? Forçar-se a fazer algo físico? Para quê? Para ficar cansado à toa ou se machucar? O que restava mesmo era o tédio. O tédio de uma carcaça que não serve para mais nada e que ainda não recebeu o doce e libertador afago da morte. Não que deseje sua morte. Pelo contrário, uma dor sem fim me toma só quando lembro que esse dia está cada vez mais próximo. Entretanto, colocando-me em seu lugar, acho que seria o que eu gostaria. O que mais tinha para mim nessa terra?
        Preparo o almoço em meio a essas espirais de pensamento e acordo o forçadamente ocioso senhor para servi-lo. Tento fazê-lo vir à cozinha, para respirar um novo ar, trocar seu ambiente, mas não consigo. Ele quer, como sempre, almoçar no quarto. Eu, novamente, como sozinho na mesa. O arroz recém cozido, o feijão descongelado e esquentado, e o filé de frango feito na frigideira com manteiga. É um almoço agradável, não tenho do que reclamar. Bom, agradável até escutar o prato (felizmente de plástico) do meu pai, como de praxe, cair no chão.
        Levanto-me e vou até lá.
        -Viu por que eu te chamei para comer na cozinha?
        Ele nada responde. Já o piso, tomado de arroz e todo ensebado, grita para mim minha nova missão: limpe já! E lá vou eu, como um soldado, obedecer.
        Finalizado o serviço, sirvo mais um pouco de comida para meu pai, compensando a quantidade derrubada, e volto para meu almoço. A comida do meu prato já esfriou, porém, como mesmo assim. Mais uma vez sinto a revolta. E contra quem eu a direcionaria? Contra Deus? Contra o pecado de Eva? Contra a oxidação do DNA? Pior ainda, contra meu pai? Isso nunca. Ele limpou minha bunda quando o debilitado era eu. Nada mais justo que retribuir. O ser humano nasce debilitado e se transforma em uma criatura habilidosa e independente para, no fim, voltar àquela mesma debilidade. Nada faz sentido… entretanto, inútil é revoltar-se.
        Como minha fria comida e lavo a louça que sujei.

        Durante a tarde, meu pai coloca em prática seu costume vespertino de ficar ativo. Logo, lá está ele mexendo nos armários, nas panelas, na dispensa e na geladeira. Em tudo. Fazendo todo o tipo de coisa insana que, em sua mente quase secular, deve fazer sentido.
        Tento fazê-lo parar.
        -Mas o que estou fazendo? – Ele resmunga.
        -Vamos pai. Deixa as coisas quietinhas para eu poder trabalhar. Por que não vai dar uma volta no quintal? – Além de ter menos possibilidades para ele fazer bagunça, eu tenho visão do quintal pela janela do meu quarto. Eu poderia ficar de olho para socorrê-lo caso fosse necessário.
        -Pode ir trabalhar. Não estou fazendo nada aqui. Estou quieto – Quando ele diz isso, olho para todos os potes de plástico e a lata de arroz que ele tirou do armário, sabe-se Deus o porquê, e colocou em cima da mesa. Mais uma vez dou aquele riso com o fundo de estranheza de antes. Tento achar graça da situação, porém é uma graça desgraçada.
        -Vamos, pai – pego sua mão e tento conduzi-lo para o quintal.
        Ele puxa a mão com força (uma força surpreendente) e resmunga naquela voz cada vez mais indecifrável.
        -Me deixa aqui! Não estou fazendo nada de mal! – Apesar de tudo, sua voz soa forte.
        -Pai, por favor! – Elevo minha voz também. – Não seja ruim comigo! Eu preciso trabalhar, por favor.
        Por fim, consigo fazê-lo sair da cozinha, que rapidamente organizo. Volto para meu quarto, sento-me na cadeira do computador e, como sempre, sou tomado por uma culpa infernal. Eu gritei com um idoso… Pior: eu gritei com o meu pai! Aquele mesmo grito, na infância, teria me gerado uma surra que jamais esqueceria. Hoje, eu o usei para intimidá-lo. Não sou mais criança, sou mais forte, não tenho medo de qualquer punição paterna. Contudo, aquilo não é o certo a se fazer com meu pai… Que outra escolha eu tenho? Ele nunca me obedece. Nunca! Nunca colabora! No entanto, a culpa não é dele… Que escolha eu tenho? Que porra de escolha eu tenho?
        Pego meu travesseiro de cima da cama, enfio o rosto nele e grito. Grito até a angústia se dissipar. Até não sentir mais aquela culpa.
        Minimamente recuperado, volto ao trabalho, com olhos e ouvidos atentos se está tudo bem ou se ele apronta algo.

        No fim do dia, é hora dele tomar banho. Como de costume: sozinho. Fico no quarto esperando, ouvindo o chuveiro que deixei ligado. Os minutos passam (eles sempre passam) e uma vontade de urinar me toma. Aguento, pois não quero interromper meu pai. Passa um tempo, ele ainda não saiu e a vontade se torna insuportável. Decido ir ao banheiro apressá-lo.
        Bato na porta:
        -Pai? Está tudo bem?
        Ele não responde. Assustado, abro (apesar de dar privacidade, nunca permito que ele tranque a porta, por segurança) e o vejo sentado na privada, ainda de roupa.
        -Pai, por que ainda não tomou banho?
        Ele me olha e responde apenas um gemido incompreensível.
        Um novo momento de raiva, culpa e toda essa porcaria…
        Respiro fundo e, com movimentos suaves, guio-o até o boxe, já erguendo sua camisa para que ele tire.
        -Deixa que eu tomo banho sozinho – ele reclama.
        Sei que não vale a pena insistir. Então, apenas deixo o banheiro.
        -É para tomar banho mesmo, hein?
        Sigo aguentando a vontade de urinar até ele, uns trinta minutos depois, sair do banho.

        No jantar, comemos o que sobrou do almoço, eu apenas requento. A refeição, ao contrário do resto do dia, é tranquila. Meu pai até come na mesa e conversa um pouco comigo. Ele, às vezes, tem esses momentos de lucidez e alegria, nos quais se lembra de ser a pessoa de antes. Volta a ter a personalidade que ele construiu durante a vida e que a maldita velhice nos roubou.
        Aproveito esse momento de raro alívio.

        À noite, assisto a um pouco de televisão e vou dormir. Meu pai já tinha ido dormir um pouco antes. O sono longo dos idosos e o hábito da roça de dormir mais cedo (que nunca perdeu) me dão aquelas horas tenras sem preocupações.
        Já na cama, encaro o teto. Vários pontos de luz, vindos dos postes da rua de trás, o pintam.
        -Amanhã começa de novo – falo sozinho.
        Tento dormir, preparar-me para o dia de amanhã cheio de raiva com culpa, insanidade senil, gritos, limpeza de fezes, comida, e confusão mental.
        Chega! Não posso reclamar. É meu dever cuidar dele, como ele cuidou de mim. Certo? Entretanto, sei que minha raiva não é contra meu pai, pobre coitado…
        Minha raiva é contra a falta de sentido do maldito enigma da esfinge. Da chegada da noite onde andaremos sobre três patas. Do inevitável crepúsculo que, os que podem, pagam aos cirurgiões para camuflá-lo (talvez, mais de si mesmo que dos outros). E não passa disso: uma camuflagem. Plástica alguma salvará seus membros de fraquejarem, seu cérebro de perder seu poder. É a transformação que eternamente estará com o homem, de Adão até a sua extinção. O maldito destino de todos (menos daqueles que, com um fim pior, morrem jovens).
        Eu sinto falta do meu pai, mesmo ele ainda estando vivo. Sua consciência se rarefaz diante de meus olhos. Isso não faz sentido! Deveria caber somente à morte o papel de fazer-nos sentir falta dos nossos amados.
        Maldita metamorfose.
        Maldita inevitável metamorfose.
        E que escolha eu tenho? Em que tribunal eu poderia buscar a justiça que acho que me é direito?
        Resta-me dormir para o amanhã.
        E o depois de amanhã.
        E o depois de amanhã.
        Até ter o mesmo destino de perder a consciência, a força e a inteligência que cultivei a vida toda. Não conseguir viver sem depender de alguém, me cagar e me mijar. Ou fugir disso com uma morte jovem. O que mais eu poderia fazer?
        Que escolha eu tenho?
        Que escolha todos nós temos?

Deixe um comentário

Crie um site como este com o WordPress.com
Comece agora